Como peregrino em
terras hospitaleiras
- O que a música significa pra mim? Um dos possíveis caminhos para o desenvolvimento espiritual.
O português do homem esguio, de cabelos e barba escuras mas levemente grisalhos é totalmente compreensível, e sua entonação é clara e firme; mas o leve sotaque, que reforça os erres e sutilmente esconde as últimas letras das palavras, é uma dica para a origem do sujeito de feições expressivas e braços gesticulantes. Uma pista mais clara? É só perguntar-lhe o nome: Tibô Delor, é o som que os seus ouvidos registrarão. Mas basta saber a grafia correta do nome para que não sobre nenhuma gota de incerteza. Thibault Delor é músico e deixou sua terra natal, a França, há 18 anos, e escolheu o Brasil como nova pátria – decisão que sustenta até hoje.

Foto: Paulo Rapoport.
Foto: Paulo Repoport
Mas tudo começou em Metz, cidade do noroeste da França. Lá nasceu Thibault, o décimo de onze filhos de uma família viajante e com uma “visão planetária do mundo”. Quando tinha um ano e meio, os Delor mudaram-se para Niece, no sul do país e na beira do Mar Mediterrâneo; lá, encontraram um “clima privilegiado” – lugar no qual é possível “nadar no mar de manhã e esquiar nos Alpes a tarde” - e uma das maiores metrópoles do país. A infância de Thibault foi tranquila e muito caseira; e, logo nos primeiros anos, veio a paixão pela música. Ele e quase todos os irmãos tiveram aulas de piano; Thibault também aprendeu violão. Quando o pai percebeu o talento do pequeno filho para a música, matriculou-o num conservatório, onde estudou saxofone por oito anos.
Já pensando na profissionalização, Thibault foi atrás de um instrumento que lhe desse mais horizontes. Voilà: veio o contrabaixo – aquele, que tanto é confundido com o violoncelo. Para que já fique claro, o contrabaixo acústico é o maior e mais grave dos instrumentos de corda; com altura média de 1,80 metro, suas cordas podem ser friccionadas com os dedos do músico ou com o arco, o qual pode ser construído em dois modelos diferentes: o alemão e o francês.
Pois bem; o francês. Ele logo se aventurou em suas primeiras experiências assim que surgiu a “forte” ligação com o instrumento – quatro meses depois, por exemplo, já fazia sua primeira turnê internacional com a Orquestra Jovem do Mediterrâneo. Com o passar dos anos, Thibault tornou-se profissional respeitado e de certo destaque no cenário musical de Paris; participou de gravações com importantes artistas e tocou por quatro anos na Orquestra Nacional de Ópera de Paris. Fez, também, duas turnês no Brasil em 93 e 95; foi quando percebeu que o país tropical lhe chamava. Ao sair de viagem, a saudade do país natal foi bem menor do que o que sentiu quando deixou o Brasil após as apresentações.
Esse chamado, porém, já havia começado muitos anos antes. Ainda menino, Thibault apaixonou-se pela música brasileira, que “é muito prezada em na Europa.” Já havia tido contato com a música de João Gilberto, Tom Jobim, Chico Buarque e outros ícones da música tupiniquim. Thibault lembra que, quando criança, sua família costumava frequentar uma das praias de Mônaco; no caminho até lá, a trilha sonora na Kombi de seu pai era de álbuns de Jobim. Embalado pela música e pelo ensolarado clima, o menino admirava a belíssima praia, com altos rochedos que caíam a pico no mar, deitava-se nas águas calmas e de temperatura amena do Mediterrâneo e já se imaginava nas tropicais praias brasileiras. Uma sensação forte, como se já “havia sido preparado desde criança para a experiência que eu teria no Brasil.” Assim, dois anos depois das turnês, em 1997, Thibault decretou: chega de saudade. O francês amante da música de Jobim encarou o samba do avião mais uma vez e veio em busca da wave brasileira.
Thibault escolheu Campinas como a nova cidade pois era o berço de sua então esposa, Valéria, uma brasileira que conheceu na França e com quem já tinha seu primeiro filho, Leonard - na época com um ano; depois de mais dois anos e, já no Brasil, veio sua segunda filha, Julietta. A adaptação foi rápida; já acostumado com a variedade de idiomas da família e fluente no espanhol, ele logo aprendeu o português e familiarizou-se com os costumes do novo país. Cansado com os erros na pronuncia, ele até abrasileirou o nome, “pra mostrar que é assim que se fala, Tibô” - recentemente, ele reassumiu a grafia original do nome porque agora as pessoas “já sacaram” como se chama.
“Na verdade, eu não vim aqui para fazer pinta de estrangeiro, mas para viver como um brasileiro”, conta Thibault. Um brasileiro como muitos, que adora o contato físico e os abraços afetivos com os mais próximos. Um brasileiro como alguns, que aprendeu a andar sem medo mesmo nas ruas mais perigosas pelas quais passou – na verdade, ao andar nas ruas, toma uma atitude “de mais dar medo do que ter medo”. Um brasileiro como poucos, que já conheceu quase todos os estados do país – só lhe faltam o Acre, Rondônia, Roraima, Piauí, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul - e sempre se interessa pela cultura e o folclore regional de onde visita.
Comprovando a paixão pela música de Jobim, Thibault, em 2001, gravou No Tom da História, com arranjos próprios para a obra do compositor carioca e com participação do violonista Paulo Jobim, filho de Tom. Assim escreveu o francês no encarte do CD, apenas quatro anos após a chegada no país: “Vim para o Brasil em busca de inspiração, encontrei receptividade, emoção e afinidade.” Ele ainda tocou por três anos na Orquestra Sinfônica de Campinas e criou a Orquestra de Contrabaixos Tropical, que mistura a música brasileira, de ritmos como baião, samba e maracatu, com apresentações performáticas e teatrais – tudo isso apenas com cinco contrabaixos. Seu projeto com a Orquestra Tropical rendeu-lhe, inclusive, uma apresentação no Programa do Jô em 2004.
Recentemente, no trabalho com a Orquestra Tropical, Thibault escalou o filho Leonard, hoje com 19 anos, para uma turnê por cidades do Brasil e também pelo Panamá – uma experiência “forte e muito amadurecedora”, conta o jovem. Leo, como é mais conhecido, não é só filho, mas também é aluno de Thibault. Um professor exigente na mesma medida em que é como pai, “porque ele quer tanto que eu seja um bom músico quanto uma boa pessoa”, explica Leo. Apesar dos estudos com o contrabaixo, o jovem escolheu cursar psicologia. Ele pensou em seguir os passos do pai e ir estudar música no Conservatório de Paris; mas, assim como Thibault, ele optou pelo Brasil. Leo garante que a relação entre os dois é ótima, e vê o pai como um “super profissional”: “Ele toca muito bem, sabe fazer bem o que faz.”
Mais do que suas conquistas e realizações, Thibault valoriza as boas companhias e as boas conversas. Adora viajar, e investe grande parte de seus recursos nisso. Histórias? São várias; como quando escapou de um assalto em Salvador por dizer ser músico - “você é dos nossos”, foi o que disse o frustrado gatuno enquanto se afastava - ou quando foi com sua Kombi novinha para uma turnê na Argentina em 2010 com toda a orquestra de contrabaixos – cinco instrumentos e cinco pessoas. “Eu sou muito desapegado. Até demais. Eu não gosto de dinheiro, não gosto de ter coisas”. Se pudesse não ter nada, viveria muito bem, conta Thibault. Um de seus maiores sonhos é andar livre pelas ruas, “sem absolutamente nada”.
Nem mais francês e nem mais brasileiro; é assim que Thibault se define: “eu diria que eu estou quase nos 50 a 50%”. Hoje, se considera mais francês do que quando saiu da terra natal, pelos valores que defende em seu trabalho musical; e mais brasileiro do que muitos, pelo seu conhecimento da cultura brasileira. Se ele pensa em voltar para a Europa? De jeito nenhum. O Brasil é a terra do futuro em várias maneiras, conta o músico. E é aqui que Thibault consegue trilhar pelos caminhos em busca “de outras dimensões”.
E assim vai peregrinando este músico franco-brasileiro de 51 anos, procurando no trabalho e na experiência cotidiana seu desenvolvimento como ser humano:
- O que a música significa pra mim? Um dos possíveis caminhos para o desenvolvimento espiritual. Porque é uma linguagem artística e que se pratica em coletivo, sempre com a ideia de construir alguma coisa juntos que vá além da música, mas que chegue numa experiência humana em coletivo. O principal é isso: é descobrir o amor verdadeiro.